Poucos trajetos no mundo são tão belos quanto os 370 quilômetros entre Santiago, no Chile, e Mendoza, na Argentina. Uma região onde se misturam estações de esqui, marcos históricos, vinícolas e paisagens inesquecíveis
Fotos: Paulo Mancha / Ciro C. Monc ayo / Divulgação
São somente 370 quilômetros – menos que a distância entre Rio de Janeiro e São Paulo. Em teoria, daria para trilhar o percurso de carro em cerca de seis horas. Mas ninguém consegue viajar em apenas um dia de Santiago, a capital do Chile, até Mendoza, no extremo oeste da Argentina.
A quantidade de belezas naturais e atrações feitas pelo homem é tamanha que se torna impossível dirigir mais do que 30 ou 40 quilômetros sem querer parar para uma foto ou para desfrutar do cenário por horas – ou dias. São vinhedos, montanhas nevadas, sítios arqueológicos, estações de esqui, recantos históricos e vilazinhas que encantam.
Isso sem contar as próprias Santiago e Mendoza, duas cidades grandes, com centenas de opções de lazer, compras e passeios culturais. Eu fiz esse trajeto em um automóvel alugado na capital chilena e conto, a seguir, tudo de bom que há na deliciosa travessia dos Andes.
Bucolismo no Vale do Aconcágua
Autopista de Los Libertadores. Esse nome cheio de pompa remete à estrada que sai de Santiago rumo ao norte, em direção ao Vale do Aconcágua (o rio, não a famosa montanha). Os primeiros 40 quilômetros podem desapontar quem espera logo ver belas paisagens. Não há absolutamente nada de interessante nesse começo de jornada, só algumas cidades sem lá muito charme da periferia da capital.
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Mas conforme o cenário urbano fica para trás, surge um vale semiárido encravado entre os Andes e a Cadeia da Costa. É a região de Cuenca de Chacabuco, recanto de uma beleza incomum – seca e rochosa. Lugar tão livre de nuvens e chuvas que até mesmo uma estação de rastreamento de satélites foi instalada ali pelos americanos.
Como se fosse um guardião da Cuenca, ergue-se ao lado da estrada o Monumento à Vitória de Chacabuco – uma enorme estátua de um soldado estilizado. É aqui que começam surgir cenários inspiradores.
Paredões de pedra ladeiam a rodovia, que segue rumo à cidadezinha de Los Andes, a 75 quilômetros de Santiago, último ponto em “terras baixas”, antes de subir a cordilheira rumo à Argentina.
Artesanato e Termas
Mas vale a pena fazer um desvio no trajeto e explorar essa região. Há pequenos achados, como o bairro Almendral, em San Felipe. Ali está a Igreja del Almendral, um marco histórico, construída toda em madeira em 1860 e perfeitamente preservada.
O antigo convento franciscano anexo à igreja deu lugar a uma cooperativa que produz algumas das mais admiráveis obras de artesanato chileno. Sem falar na Capela de Santa Teresa de Los Andes, no distrito de Rinconada, palco de romarias e ponto de especial interesse para o turismo religioso.
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O grande atrativo, contudo, fica cerca de 20 quilômetros à frente de Los Andes. No alto de uma colina surge uma das mais bucólicas estâncias hidrominerais do Chile. São as Termas de Jahuel, a 1200 metros de altitude, de cara para o Vale do Aconcágua.
O lugar tem tradição que remonta ao século 19. O cientista inglês Charles Darwin foi um dos primeiros a descobrir esse retiro cheio de calma, beleza e guas termais, que brotam mornas da terra em fontes naturais. Foi lá que Darwin descansou, após suas pesquisas no Chile, em 1834.
Um hotel butique foi construído em volta das fontes geotérmicas – isso em 1912, e até hoje é a vedete dessa parte da província. Trata-se do Termas de Jahuel, encravado numa encosta, cercado por uma pequena floresta, com piscinas de águas tépidas que se projetam na paisagem.
O sossego é absoluto e, por isso, virou refúgio de celebridades e artistas. Os únicos que vêm xeretar por ali são os zorritos, as pequenas e simpáticas raposinhas das colinas. Hospedar-se no Termas de Jahuel não é barato – uma diária para casal sai pelo equivalente a R$ 500 (preço que cai bastante nos pacotes de 3, 4 ou mais dias).
Mas a paz, as piscinas termais, o requintado spa e a visão ímpar do Vale do Aconcágua compensam o valor. E ainda proporcionam um bem-vindo descanso antes de encarar a adrenalina da estradinha que corre Andes acima.
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Um carro a 3 mil metros de altitude
O ápice da viagem é a passagem pela estação de esqui de Portillo. Em todos os sentidos, já que ela fica a quase 3 mil metros de altitude, em plena Cordilheira dos Andes. E tudo conspira para fazer o coração bater mais forte nessa etapa da jornada.
A começar pela própria estrada que leva até lá. De Los Andes a Portillo, são 60 quilômetros, dos quais dez pela célebre “Estrada Caracol”. Seu nome oficial é Ruta 60 e ela vai do seco Vale do Aconcágua até os picos nevados da estação de esqui, quase na divisa com a Argentina.
Nesse trajeto relativamente curto, ocorre uma surpreendente mudança de cenários. Do deserto para os bosques, dos bosques para a neve. A Estrada Caracol revela nada menos que 29 curvas seguidas em forma de ferradura, conforme ela galga a montanha.
É inevitável o frio na barriga ao dirigir por ali. Primeiro, porque a temperatura, de fato, despenca. Segundo, devido aos penhascos e desfiladeiros a poucos metros dos pneus. Terceiro, pelas condições de tempo: no inverno, é obrigatório levar correntes para colocar nas rodas em caso de nevasca e absolutamente recomendável pedir dicas a motoristas mais experientes.
Apesar disso, é uma estrada segura para quem dirige com cautela. E próximo a Portillo dá até para estacionar no acostamento e fazer aquela impressionante foto do “caracol” montanha abaixo.
Uma vez vencida a adrenalina da estradinha de montanha, é vez de se aventurar no gelo. Portillo é um dos mais deliciosos resorts de inverno do mundo. Eu escrevi sobre o lugar neste post.
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Entre Chile e Argentina
Depois de curtir Portillo, peguei a estrada de novo, rumo à Argentina. O percurso entre a estação de esqui chilena, nos Andes, e Potreríllos, às margens do Rio Mendoza, já na Argentina, é provavelmente um dos mais belos do mundo para se trilhar de carro.
O lado argentino da cordilheira lembra uma pintura surrealista, com mosaicos de cores, formas e surpresas visuais a cada curva. A fronteira, a 3.200 metros de altitude, é demarcada pelo Túnel internacional Cristo Redentor, com seus quatro quilômetros de extensão.
Inaugurado em 1980, ele substituiu um perigoso trecho de estrada que conduzia os motoristas até sufocantes 3.854 metros de altitude, onde havia a única passagem por entre os altíssimos cumes andinos.
A velha estrada ainda existe e pode ser explorada partindo do povoado de Las Cuevas, na Argentina – mas só quando não há neve na pista de terra. Ela leva à estátua do Cristo Redentor dos Andes – que, vale dizer, é mais antigo que a nossa, do Rio de Janeiro. Foi instalada em 1904 – 27 anos antes da versão carioca.
Em compensação, nem se compara em termos de tamanho: tem somente 8 metros de altura. Viajar até lá pode ser uma dor de cabeça – literalmente: nessa altitude, a quantidade de oxigênio é de apenas dois terços do normal, e isso pode ocasionar fadiga e outros efeitos nas primeiras horas. Ou seja, mais uma precaução para quem dirige.
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Argentina: com o Monte Aconcágua o fundo
Por isso, uma providencial parada de aclimatação é oferecida no Parque Provincial Aconcágua, logo a 12 quilômetros da fronteira pela Ruta 7 (nome da estrada no trecho argentino).
Essa é a porta de entrada para quem deseja escalar ou simplesmente admirar o Monte Aconcágua, ponto culminante das Américas, com seus 6.962 metros. Se você imaginou um lugar inóspito, gelado e de difícil acesso, saiba que é exatamente o contrário.
Há estacionamento, centro de visitantes e tours guiados que levam a mirantes de onde se pode avistar a imponente montanha. Você tem a opção de passar o dia desbravando trilhas com apoio de guias especializados ou fazendo um gostoso piquenique andino.
Praticamente ao lado do Parque Aconcágua fica o posto de imigração e alfândega Los Horcones e, em seguida, um dos pontos altos da Ruta 7: a instigante Puente del Inca. Trata-se de uma mescla de sítio arqueológico, fenômeno natural e marco histórico.
Ao longo de milhares de anos, uma ponte se formou sobre o Rio Mendoza, caprichosamente moldada por geleiras de épocas remotas nas rochas calcárias amarelas. Ela serviu por muito tempo às tribos pré-colombianas como única forma de cruzar o curso de águas geladas e revoltosas, originárias do degelo dos Andes.
Depois, no século 19, ingleses contratados para construir ferrovias ergueram ali, junto à ponte, um pequeno spa, hoje em ruínas e tomado pela coloração amarela do calcário trazido pelo rio. Clique na foto para ampliar e ver a legenda
É desafiador fotografar a Puente del Inca sob os mais variados ângulos, assim como explorar a feira de artesanato e produtos típicos que se instala todos os dias ao lado dela. Há também restaurante, lanchonetes, hostels (bem simplórios, é bom avisar) e até um minimuseu.
Argentina: o incrível Vale do Rio Mendoza
O melhor, porém, ainda está por vir. Dez quilômetros além de Puente del Inca, surgem duas pequenas estações de esqui – Los Penitentes e Los Puquios. E, em seguida, começa a longa descida pelo Vale do Rio Mendoza, onde cânions, falésias e vales rochosos fundem as cores vermelha, amarela e laranja.
Essa verdadeira obra-prima da natureza, cunhada ao longo de milhões de anos, triplica o tempo da viagem, já que ninguém resiste à tentação de parar o carro diversas vezes no acostamento para contemplar e fotografar.
São 70 quilômetros de cenários encantadores até a chegada a Uspallata, a primeira cidade Argentina depois da fronteira. Aí surge outra face desse caminho: a dos esportes de natureza. Pequenas agências levam a cavalgadas e jornadas de mountain bike, quadriciclo, trekking e até parapente pelos campos e colinas no entorno. Elas passam inclusive por ruínas indígenas, minas de prata abandonadas e sítios arqueológicos pré-colombianos.
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Mais adiante, no caminho para a enorme represa de Potrerrillos, multiplicam-se pela beira da estrada as agências de rafting, que aproveitam as águas verdes (e geladas!) do Rio Mendoza.
Apenas 80 quilômetros separam Potrerillos do destino final, Mendoza. Mas também aqui vale a pena pernoitar. Há boas opções de hospedagem, algumas simples, outras bastante charmosas. A exemplo do Pueblo del Rio, um hotel com 20 chalés debruçados sobre as corredeiras límpidas do Rio Mendoza.
Construídos em estilo rústico, com madeira e pedra por fora, são quentes e confortáveis no interior, com cozinha completa e TV. O hotel agracia os hóspedes ainda com piscinas aquecidas, um spa com terapias feitas ao ar livre, um restaurante de receitas andinas à base de carne de ovelha e um salão de há repleto de futons, de frente para as montanhas.
A sensação de introspecção é plena, graças ao isolamento, à vista do vale e ao som da água corrente. Mais relaxante, impossível.
E foi assim, de alma lavada, que cheguei à maior cidade argentina deste lado do país. Mendoza é uma pérola no deserto. Mas isso é outra história, que fica para o “Especial Argentina”, num futuro próximo.
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Dicas para alugar e dirigir
O ideal para quem quer fazer a travessia é ir de avião a Santiago e lá alugar um carro. Isso porque viajar por ar até Mendoza sai bem mais caro e exige conexão em Buenos Aires. Uma vez em Santiago, não há grandes segredos para alugar um veículo – isso, claro, se você fosse ficar apenas no Chile. A passagem pela fronteira para a Argentina envolve diversas burocracias que precisam ser providenciadas com antecedência, como pagamento de seguro internacional e de uma permissão especial exigida pelo governo argentino – cerca de US$ 120. Cada locadora trabalha de forma diversa com essas exigências, mas algumas empresas no Brasil providenciam tudo junto com o aluguel, como a Mobility (mobility-online.com.br), de São Paulo, que cuidou da documentação na minha viagem. Uma vez com o carro e a papelada em ordem, tenha em mente algumas coisas. Primeiro, as leis de trânsito são rígidas no Chile e qualquer deslize – mesmo que seja estacionar por uns minutinhos em local proibido – rende multa na certa. Nas estradas, há muitos pedágios, mas que cobram bem pouco. Por isso, ande com dinheiro trocado, e o principal: tanto em pesos chilenos quanto em argentinos, já que depois da fronteira também há pedágios – e quase nenhum lugar para fazer a troca de moedas. A única casa de câmbio da fronteira tem tarifas extorsivas. Por fim, se decidir viajar no inverno, saiba que o porte de correntes para rodas é obrigatório, mas as locadoras raramente as fornecem. É preciso alugá-las (ou comprá-las) nas oficinas de beira de estrada da Ruta 60, a um custo de CLP 7.000 por dia (cerca de R$ 30). E peça para o mecânico lhe ensinar como instalar, para o caso de uma nevasca inesperada. Viajei no inverno e dei sorte de pegar a estrada sem (muita) neve. Mas enquanto eu estava em Mendoza, uma nevasca fechou o caminho e fiquei lá esperando 4 dias até que a estrada fosse liberada de novo ao tráfego. tenha isso em mente, pois pode acontecer com você! De resto, é só ter cautela e abastecer o carro com frequencia, mesmo que o tanque esteja ainda pela metade, já que são grandes os trechos de estrada sem postos de combustíveis, sobretudo no lado argentino.
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Saiba mais: http://chile.travel/pt-br/
adorei o seu relato mancha…paisagem maravilhosa…vou aguardar a reportagem especial sobre Mendonza e sobre seus os excelentes vinhos….obrigado…e a propósito o que significa aquelas folhas no capacete do Ohio State ?