Um giro pela Provença– Parte 3

Os lugarejos bucólicos da Reserva Natural de Luberon foram a parada seguinte de nossa road trip pelo sudeste da França. Uma região para contemplar, admirar e nunca esquecer!

TEXTO E FOTOS: PAULO MANCHA

Luberon – o inigualável 

Se você viaja somente a Marselha ou Aix-en-Provence, pode prescindir do carro e conhecer tudo a pé ou com o transporte coletivo. No entanto, a Provença é muito mais do que essas duas cidades. Um lugar absolutamente obrigatório em qualquer roteiro é a Reserva Natural de Luberon.

Não se engane com o nome. “Reserva Natural” lembra parque florestal, selva, local desabitado… Nada disso. O Luberon, como é mais conhecido, é, de fato, um reduto com muito verde e natureza intocada. Mas ele engloba dezenas de povoados e vilarejos, além de fazendas de oliveiras, campos de lavanda e vinícolas.

O nome vem do maciço montanhoso em torno do qual a reserva foi criada. Dirigir por suas estradinhas vicinais foi uma das experiências de viagem mais poéticas que já tive.

O carro, neste lugar, é essencial para que você possa desfrutar dos grandes e pequenos atrativos disseminados na extensão do Parque.

E também para que possa escolher qualquer um dos mais de 280 hotéis e pousadas espalhados pela região. Experimentei três deles, com padrões e diárias distintos.

No campo, com glamour

Como iniciei minha road trip pela vilazinha medieval de Lourmarin, foi ali que me hospedei primeiro, no aprazível Le Mas de Guilles. Ele é um três estrelas, mas parece de maior padrão pelo conforto e decoração dos quartos, pela piscina integrada à natureza e pela gastronomia de primeiríssima, capitaneada pelo chef Patrick Lherm, que só usa ingredientes locais.

Em tempo, o hotel fica em um “mas” do Século 16. Ou seja, uma casa-sede de fazenda, com campos e mais campos por todos os lados. Não é à toa que integra a rede “Relais Du Silence”, composta de 180 propriedades onde a palavra-chave é relaxamento.

Por falar em sossego, eu disse lá atrás que Aix-en-Provence era tranquila? Então imagine esta comuna cuja população fixa é dez vezes menor… São apenas 1500 habitantes. Lourmarin é para meditar, contemplar e devanear.

Um castelo no seu caminho

A sensação de estar em outra realidade começa logo ao chegar, quando você se depara com seu castelo, Château de Lourmarin. Erguido no Século 13, ele foi todo remodelado em estilo renascentista nos tempos do rei René de Anjou (aquele do docinho chamado calisson). Depois, trocou de donos diversas vezes, sobreviveu à Revolução Francesa e acabou abandonado no começo do Século 20.

Restaurado pelo governo da Provença, hoje é uma das atrações mais procuradas pelos turistas. Por fora, a arquitetura e os jardins muito bem cuidados formam um cenário inspirador.

Por dentro, é o acervo de antiguidades e obras de arte que impressiona. Na mostra fixa, flagrei desde artefatos arqueológicos de 2500 anos até uma mostra de mapas e descrições de povos das Américas feitas por navegadores dos Séculos 16 e 17.

Em duas salas do castelo há entalhes de pedra nas paredes representando índios americanos – coisa absolutamente incomum num castelo europeu.

Singular como isso era outro fato registrado na mostra do château: o amor do romancista e dramaturgo Albert Camus por este lugar. Há diversas fotos do vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1957 frequentando o castelo.

Camus, vale dizer, nasceu na Argélia, mas pediu para ser sepultado ali pertinho, no Cemitério de Lourmarin. Sua lápide é ponto turístico. Para chegar a ela, você tem que cruzar o alegre centrinho, onde dezenas de boutiques, joalherias, lojas de perfume e presentes se mesclam a uma profusão de cafés e restaurantes.

A vila que parece tirada de um filme

Estacionei o carro e me perdi por mais de uma hora nas ruazinhas diminutas, até decidir escolher um bom restaurante para degustar a culinária provençal de Lourmarin.

Café de l’Ormeau ou Café Gaby? Ambos simpáticos e aconchegantes, com mesinhas ao ar livre. Optei pelo segundo e não me arrependi.

A bruschetta gigante à moda provençal, com presunto cru, ficou ainda mais saborosa quando fiz a estripulia de acrescentar o aioli – a emulsão preparada com gemas cruas, azeite e alho, bem típica daqui. Mas havia também o frango com ervas, as quiches, tapenades… Enfim, não faltam opções para entreter o paladar.

Por falar em gastronomia, prossegui pelas estradinhas bucólicas, com o maciço de Luberon ao fundo, em direção a Bastide du Laval, na rodovia D-45, perto da cidadezinha de Cadenet. Trata-se de uma propriedade produtora de azeite de oliva. E, por estar numa região de preservação da fauna e flora, tudo ali é feito de forma orgânica, sem químicos nem aditivos.

Falando assim, pode parecer um negócio simplório, metido a hippie ou new age. Nada disso. Bastide du Laval é um lugar cheio de tecnologia, com uma loja ampla e moderna, linha de produção up to date e uma estrutura de visitação turística muito bacana.

Fui recebido pelos donos, Roland e Carine Coupat, que me levaram para ver a linha de produção e plantação. Por sinal, do meio das oliveiras, pode-se apreciar a porção mais sublime das montanhas de Luberon, inclusive o Mourre Nègre – ponto culminante do maciço.

O mais interessante é que, se o visitante assim desejar, sua caminhada pela propriedade pode ser acompanhada dos “guias” mais solicitados da região: a golden retriever Bonnie e a bernese Luna. Os cães carinhosos e bagunceiros são a marca registrada deste lugar. Além, obviamente, das mais de dez variedades de azeites de nível absolutamente distinto.

Finda a visita, parti para a estrada, com o bravo Toyota Yaris alugado. Mais trabalho que o carro, só mesmo a câmera, graças às cativantes paisagens campesinas.

O espetacular hotel da L’Occitane

Se você gosta de cosméticos, uma dica é dirigir em direção ao oeste, rumo à cidade de Manosque. Ali ficam as instalações originais da L’Occitane en Provence. Há uma enorme loja de fábrica com centenas de produtos e, ainda, a linha de produção, que pode ser conhecida em um passeio guiado de uma hora.

Nessa visita, conta-se a interessante história de Olivier Baussan, o ex-estudante de literatura que, em 1976, fez a loucura de comprar uma decadente fábrica de sabão para criar um negócio próprio, que valorizasse as flores e plantas da Provença.

Era para ser apenas uma despretensiosa iniciativa regional, mas acabou virando uma das maiores e mais bem reputadas indústrias de cosméticos do planeta.

Muito bacana ver os primeiros cremes e loções concebidos por Baussan, assim como as ramificações da L’Occitane pelo mundo (ela tem linha de produção também no Brasil) e, sobretudo, o meticuloso trabalho feito para que tudo seja totalmente livre de agrotóxicos, aditivos químicos e insumos de origem animal.

Sem falar na atuação da empresa no país africano de Burkina Faso, de onde vem a manteiga de carité, iniciativa social por várias vezes premiada internacionalmente.

A L’Occitane tem seu próprio hotel não muito longe dali, na cidade de Mane. É o espetacular Le Couvent des Minimes Hotel et SPA, instalado em um antigo convento, erguido em 1613. Foi onde me hospedei por uma noite, ao lado do spa onde homens e mulheres submetem-se a tratamentos relaxantes dos mais diversos com produtos da marca.

Não é só isso, o Le Couvent des Minimes incorpora um restaurante estralado no Guia Michelin, o Le Cloître, além de campo de golfe e uma das piscinas mais bacanas em que já mergulhei – parte interna, e parte ao ar livre, de cara para os campos da Provença. Um hotel que por si só já vale a viagem.

A delícia de se perder pela Provença

Desbravados o centro e o leste do Luberon, parti para o oeste – e recomendo o mesmo trajeto a você, caro leitor. Você deve estar perguntando: “Mas por qual estrada?”

A resposta é simples: qualquer uma. Eu propositalmente desliguei o GPS e saí aleatoriamente dirigindo pela Reserva Natural de Luberon por algumas horas. O emaranhado de estreitos caminhos não te deixa 10 minutos sem ter uma bela paisagem para flagrar.

Quando liguei de novo o aparelhinho, rumei a Lagnes, onde passei a noite. E, ato contínuo, fui conhecer mais três pérolas deste lugar: Fontaine-de-Vaucluse, Roussillon e Gordes, todas num raio de 25 km.

A aldeota de Fontaine-de-Vaucluse fica num entremontes – daí seu nome, do latim “Vallis Clausa”, que significa vale fechado. Por ela passam as águas cristalinas da misteriosa nascente do Rio Sorgue.

Por que misteriosa? Porque ela se esconde numa caverna subterrânea que nunca pode ser completamente mapeada. O explorador francês Jacques Cousteau até tentou, mas parou num labirinto submerso 314 metros abaixo da superfície.

Quando escrevi acima que a as águas “passam” pelo vilarejo, não me referi a um riacho ladeando a cidadezinha. O fluxo literalmente cruza o casario, paralelamente às ruazinhas, sob pontes, por todos os lados.

É uma visão graciosa, já que a transparência é quase total, permitindo ver o fundo rochoso e, vez por outra, preguiçosas enguias, trutas agitadas e, com uma dose de sorte, até mesmo simpáticas lontras.

Ao longo da estrada que leva a Fontaine-de-Vaucluse, vi diversos campings e estacionamentos de motorhomes – tenha isso em mente, pois é uma forma econômica de conhecer o Luberon, além de cheia de intimidade com a natureza.

No meu caso, acomodei-me em outra antiga sede de fazenda, o Le Mas de Gres, nos arredores de Lagnes. De diárias mais em conta, e bem simples (não tem wi-fi nos quartos, por exemplo), ele pode não oferecer luxo e garbo, mas tem um charme muito particular, graças à hospitalidade dos proprietários, o casal Nina e Thierry Crovara.

Foi o lugar em que mais me senti acolhido em toda viagem. Sem falar na gastronomia: Therry é conhecido por preparar a mais deliciosa bochecha de boi do Luberon, cozida lentamente por seis horas em fogo baixo, e servida com temperos locais que eu nunca havia provado.

De lá, parti para Roussillon. Essa vilazinha de apenas 1500 habitantes, no alto de uma colina, tornou-se atração turística por dois fatos curiosos. Primeiro, ela tem a maior jazida do mundo do pigmento da cor ocre. Na verdade, está assentada sobre um colossal agregado de argila com excesso de hematita e óxido de ferro.

Sua atração turística é a Trilha do Ocre, que percorre a encosta da montanha onde, desde tempos imemoriais, minas de argila ocre foram exploradas. Não faltam, é claro, dezenas de lojinhas de suvenires feitos com o pigmento.

Muito próximo dela, a 15 minutos de carro, fica o caprichadíssimo Museu da Lavanda. Ali, descobri que aquilo que boa parte do mundo chama de “lavanda”, na verdade, é o lavandin, uma planta bem menos nobre e com características mais grosseiras de aroma e toque. Serve para produtos de limpeza e afins.

A lavanda verdadeira, por sua vez, só cresce na Provença, em territórios que estejam pelo menos 800 metros acima do nível do mar. Para fazer um litro de óleo essencial, são necessários 130 quilos de flores! Ela é mais sutil nos aromas e tem propriedades medicinais.

Claro que, anexa ao museu, fica uma farta loja da marca Le Château du Bois, com tudo o que você possa imaginar à base de lavanda (verdadeira): perfumes, sabões, xampus, hidratantes, esfoliantes, gel após barba, tonificantes, florais e até batons…

Dali, segui para minha última parada na Reserva Natural do Luberon: a deslumbrante Gordes.

O cartão-postal do Luberon

Imagine um rochedo de 600 metros de altura despontando no centro de uma larga planície. Agora conceba uma cidadezinha no alto dessa formação rochosa. Com edificações que, ora remontam à Antiguidade, ora à Idade Média. Tudo isso permeado pela mística de um recanto que já serviu de baluarte para povos tão distintos quanto os celto-lígures, os romanos, os sarracenos e os próprios provençais, quando a região ainda não pertencia à França.

Bem-vindo a Gordes.

A aldeia de 2 mil habitantes figura em praticamente todas as listas de “mais belos povoados da França”. Por pouco ela não deixou de existir em 1944, quando as tropas nazistas dominavam a Provença e descobriram ser Gordes um dos mais fortes núcleos da Resistência Francesa.

O rochedo foi praticamente abandonado após Segunda Guerra Mundial. A “salvação”, assim por dizer, veio pelas mãos do pintor surrealista Marc Chagall. Obcecado pelo vilarejo, ele não tardou a arrastar para esse cantinho do Luberon outros artistas de renome, como Serge Poliakoff, e Victor Vasarely.

Gordes virou “cult” e, ao longo dos últimos cinquenta anos, o turismo deu a ela um novo alento.

Consegui chegar com o carro até o centrinho da vila, já na parte alta. Mas, para conhecê-la bem, é preciso rodar a pé. São portais, terraços, escadas, ladeiras e fontes espalhados em diversas alturas.

Por sinal, um dos caminhos que levam a Santiago de Compostela, na Espanha, passa perto de Gordes e, não raro, em outros tempos, os peregrinos encaravam essas subidas para se abrigar do Mistral e do frio (haja fôlego e fé!).

Minha primeira parada foi no Le Château de Gordes, o castelo erguido no Século 11 e reconfigurado em 1525, ganhando estilo renascentista. Pertenceu a uma mesma família, os Agoult Simiani, por mais de 700 anos. Hoje, abriga alguns eventos exposições temporários. Dei azar e estava fechado para visitas, sob obras de recuperação.

Mas isso não empanou em nada o brilho de Gordes para mim. Tão instigante quanto o castelo é a Igreja de Saint Firmin, de estilo românico, no ponto mais alto e visível do complexo medieval de construções. Ela encanta tanto por fora quanto por dentro, com seus afrescos e homenagem a São Firmino e a capela de São Eloi, dedicada aos ferreiros e pedreiros que outrora conseguiram erguer uma cidade em uma paragem tão inóspita.

A atração mais provocante, para mim, no entanto, foi a adega do Palácio de Saint-Firmin. Não, não há nenhuma garrafa de vinho ali. Mas já houve. A cave é, na realidade, um gigantesco complexo subterrâneo descoberto recentemente, onde se guardavam suprimentos nos tempos medievais.

Há nichos para azeite, alimentos, vinho, água… E também oratórios, passagens secretas e túneis – muitos deles ainda inexplorados, pois sabe-se hoje que há mais de 50 adegas subterrâneas interligadas. A visita guiada explora apenas uma parte delas.

Obviamente, uma descoberta assim suscita teorias de conspiração e outros excelentes temas para uma conversa de bar. E foi exatamente assim que concluí a passagem por Gordes. Acompanhado de minha guia na cidade, a francesa Anne, desbravei o Cercle Republicain, o café mais charmoso da montanha.

Além da vista estonteante do vale abaixo, esse pub cujo nome pode ser traduzido como “Círculo Republicano” oferece uma história fantástica, que amplifica o bate-papo em suas mesas debruçadas sobre o penhasco. Foi fundado em 1912 como um reduto de discussão política pró-republicana, numa época em que, acredite ou não, muitos pregavam a volta da monarquia à França.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o bar se tornou um centro vital da Resistência e até hoje é considerado pelos proprietários um “clube político”. Tanto que, se você se dispuser a pagar cinco euros, vira membro. Eu, por exemplo, já sou um legítimo “republicano francês”. E sempre serei, mesmo que nunca mais venha a pisar ali.

Seja discutindo política ou simplesmente apreciando o cenário de cartão postal ao longe, terminar a visita a Gordes por ali é garantia de saudades perpétuas deste rincão provençal igualmente eterno.


Semana que vem, a 4ª e última parte de nossa viagem: Avignon.

Publicado por Paulo Mancha

Jornalista especializado em turismo, foi editor chefe da Revista Viajar pelo Mundo e repórter das revistas Terra e Próxima Viagem. Desde 2003, fez mais de 50 reportagens internacionais e, em 2012 e 2014, foi agraciado com o Prêmio de Melhor Reportagem da Comissão Europeia de Turismo. Comentarista esportivo do canal ESPN, Paulo decidiu unir neste blog as duas paixões: viagens e esportes.

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