A região do sudeste da França é um reduto de boa vida, história milenar, natureza, gastronomia, cultura e esportes. Tudo isso se entrelaça num mosaico singular de experiências de viagem, que eu relato aqui em quatro partes. Hoje, a primeira delas: Marselha, a vibrante!
TEXTO E FOTOS: PAULO MANCHA
Ela tem praia e montanha. Vinhos e azeites. Boemia e sossego. Metrópole e floresta. Passado e presente. Esportes e atividades físicas aos montes. Parece clichê, mas a Provença é completa. Um destino de viagem fértil de história, generoso nas sensações oferecidas e absolutamente invulgar nas memórias presenteadas.
Constatei isso em sete dias pela região, desvendando seus povoados milenares em agradáveis caminhadas, assim como dirigindo por seus graciosos trajetos, sem hora para chegar ao destino.
Foram quase 500 quilômetros rodados, numa jornada por quatro de seus recantos: a vibrante metrópole de Marselha, a formosa cidadezinha de Aix-en-Provence, a instigante Reserva Natural de Luberon e a mística urbe murada de Avignon.
Um roteiro que, definitivamente, merece ser conhecido pelo viajante brasileiro. E que começa pela deliciosa Marselha…
MARSELHA – Vibrante e colorida

O início de minha jornada foi em Marselha. A despeito de ter ido à França quase uma dezena de vezes, seja a trabalho, seja por lazer, eu nunca havia colocado os pés na cidade, nem nas suas imediações. E, confesso a você, leitor do Viajando por Esporte, que propositalmente evitei pesquisar muito sobre ela de antemão. Queria as mesmas surpresas que um viajante de férias tem.
E as surpresas vieram. Primeiro com o tamanho, que percebi lá do alto, antes de pousar no aeroporto internacional do subúrbio de Marignane. Ainda no desembarque, não resisti a uma olhadinha no Google. E rapidamente fui lembrado de algo que já tinha ouvido diversas vezes: é a segunda cidade mais populosa da França, com 850 mil habitantes no município em si e quase dois milhões se levarmos em conta a região metropolitana.
Mas não imagine uma metrópole tradicional, cheia de edifícios, avenidas e carros. Nada disso. No caminho para meu hotel, percebi a natureza se impondo pelo cenário. Algo que poucas cidades grandes no mundo possuem. Falo de lugares como Rio de Janeiro ou Cidade do Cabo, em que, onde quer que você esteja, perceberá algo peculiar na paisagem, que a torna inconfundível.
Marselha é assim, com a dramaticidade dos penhascos de onde se erguem antigas fortalezas, a singeleza do Porto Velho dividindo-a ao meio e a grandiosidade da colina de La Garde, se debruçando sobre o centro. Isso para não falar das calanques – os maciços rochosos semelhantes aos fiordes escandinavos, que preenchem a costa nos arredores.
No trajeto, o motorista do táxi se esforçava no inglês para apontar os lugares turísticos – prova do orgulho que eles têm de sua cidade. Aliás, vale lembrar: não é à toa que o hino da França tem o nome “Marselhesa”. Essa era a canção que os revolucionários oriundos dali cantavam em sua marcha para Paris, em 1792. De tão bonita e inspiradora, acabou adotada pelos enfants de outras regiões e virou símbolo nacional, que permanece até os dias de hoje.

Se naquela época era entoada por guerreiros de verdade, nos tempos atuais nos acostumamos a ouvir a Marselhesa nas batalhas do futebol, inclusive quando a Seleção da França tinha em suas fileiras dois icônicos filhos desta cidade: Éric Cantona e Zinedine Zidane.
Lembrei-me disso ao passar pelo Vélodrome, o estádio do time local, Olympique de Marselha. Fã de esportes que sou, já havia decidido visitá-lo. Mas não só pelo futebol. Como quase tudo em Marselha, o Vélodrome exala história.
Essa construção de arquitetura muitíssimo singular foi inaugurada em 1937 e abrigou diversos jogos da Copa do Mundo de 1938, inclusive dois do Brasil – na semifinal, fomos derrotados ali por 2 a 1 pela Itália, que se sagraria bicampeã mundial em seguida.
A visita guiada do Vélodrome revela curiosidades que vão desde a razão do nome (sim, ele foi erguido sobre uma antiga pista de corrida de bicicletas) até as desventuras da Segunda Guerra Mundial, quando os nazistas o tomaram e transformaram em caserna. Sem falar na fatídica Copa do Mundo de 1998 – aquela em que fomos derrotados pela França na final… Mas isso é outra história.
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Hospedagem com classe
Há nada menos que 131 hotéis em Marselha, de todos os padrões e preços. Eu encarei o New Hotel of Marseille, um quatro-estrelas muito aconchegante, com piscina, quartos espaçosos, um bar descolado, restaurante e um ambiente exclusivo para mostras temporárias de arte. Ah, detalhe: o lobby fica num casarão histórico onde funcionou por mais de um século o Instituto Pasteur.
A localização também é excelente – bem no meio do caminho entre as praias o centro, permitindo caminhar até ambos. Isso porque, apesar do tamanho, Marselha é relativamente fácil de explorar a pé. A maior parte das atrações fica nas imediações do Vieux Port – o Porto Velho, coração da cidade.
Bastou-me uma caminhada de 10 minutos para atingir a célebre Plage des Catalans – a pequena faixa de areia urbana de aspecto agradável, que ferve no verão e é muito conhecida pela prática do vôlei de praia. Passar meu primeiro pôr do sol ali foi recompensador.
Andando dez minutos para o lado oposto, cheguei à Quai de Rive Neuve, a via que margeia o Porto Velho. Este é o lugar onde, 2600 anos atrás, os gregos começaram a parar seus barcos, fundando uma pequena comunidade. Por sinal, eu já disse que Marselha é a cidade mais antiga de toda a França? Pois é. Isso garante uma sensação bastante especial conforme se cruza a avenida, ladeando o braço de mar tão pleno de história.


Hoje em dia, milhares de iates e barcos de todos os tamanhos colorem o Porto Velho – convém ressaltar que esta é a terra do Mistral. Sempre ouvi essa palavra e só a reconhecia como nome de um tipo de prancha de windsurfe. Na verdade, sua origem é aqui, na Provença. Mistral é o vento forte e contínuo, temido por muitos, mas amado pelos velejadores.

Enquanto isso, em terra, restaurantes e bares charmosos, com mesinhas pelas calçadas, garantem o ar boêmio. Até uma roda gigante foi instalada por ali – a Grand Roue, que captou meu olhar graças à iluminação colorida à noite.
O passeio noturno a pé por essa região também me permitiu apreciar o esplendor do Fort Saint-Nicolas e do Fort Saint-Jean, ambos na entrada do porto e devidamente banhados em luz conforme escurece.
Decidi me perder pelo centro e foi compensador apreciar as belas fachadas do Teatro de La Criée, do Palais de la Bourse (onde fica o instigante Museu da Marinha) e da Église Saint-Ferréol les Augustins – a igreja dos monges agostinianos inaugurada em 1447 e que, no afã progressista dos tempos napoleônicos, foi cortada ao meio por uma avenida em 1801.
Terminei minha primeira noite em Marselha no folclórico Bar de La Marine, o lugar que, diz a lenda, inspirou parte da obra do dramaturgo Marcel Pagnol. Por isso, não faltam ali referências ao teatro, ao cinema e à vida tresloucada dos personagens desse festejado membro da Academia Francesa de Letras.
Ah, tem até futebol americano nesse lugar… 🏈
Um trenzinho montanha acima
No meu segundo dia, parti para desbravar as atrações mais famosas. E aí, valeu a pena ter em mãos o City Pass, que dá acesso total ao bom sistema de transporte público, além de garantir descontos na maioria dos museus.
Uma tática que uso em muitas cidades grandes é tomar um city tour, desses que empregam ônibus abertos ou afins. Eles servem para lhe dar uma noção de onde as principais atrações ficam e permitir que, depois, você volte com calma aos lugares que mais fascinam.
Em Marselha, essa opção é o Petit Train, um trenzinho turístico que percorre vários itinerários pela cidade. O City Pass dá direito a fazer um desses passeios de graça. Assim, pude ir sem gastar um euro e de forma, digamos, divertida, até o ponto culminante da metrópole, onde fica a emblemática igreja de Notre Dame de La Garde.
Erguida no alto de uma colina, 150 metros acima do restante da cidade, a basílica católica se destaca no panorama desde sua inauguração, em 1864. A vista panorâmica é daquelas que ficam gravadas na sua mente pelo resto da vida. Dá para apreciar desde o Porto Velho até a Corniche – avenida que percorre a orla, levando às melhores praias da região.
Lá de cima, é fácil divisar o Château d’If, fortaleza erguida sobre uma ilhota na Baía de Marselha. Este lugar ganhou fama ao longo da história por ter abrigado o Conde de Monte Cristo, na obra literária de Alexandre Dumas.
Não é só a vista panorâmica que empolga. A basílica em si, concebida em estilo neobizantino, tem aspecto grandioso, que faz jus ao fato de ser atração mais visitada da cidade. Repleta de mosaicos no interior, ela ostenta por fora uma estátua de 11 metros de Maria com o menino Jesus, folheada a ouro – visível de praticamente todos os cantos da metrópole. Abaixo, resta a cripta em estilo romano, datada de 1214. Tudo pra lá de místico.

O significado religioso é flagrante: há uma importante peregrinação em 15 de agosto, o Dia da Assunção de Maria. Não bastasse isso, a basílica de Notre Dame de La Garde brinda o visitante com uma miríade de histórias.
Desde de seu uso como prisão durante a Revolução Francesa, até a épica batalha de retomada na Segunda Guerra Mundial, em agosto de 1944, quando os soldados do general Joseph de Monsabert receberam ordens de expulsar as entrincheiradas tropas nazistas sem usar bombas ou armas que pudessem macular o patrimônio histórico.
A beleza de Notre Dame de La Garde só foi rivalizada quando desci novamente à cidade baixa e me deparei com a gigantesca Cathédrale Sainte-Marie-Majeure – ou simplesmente Cathédrale de la Major.

Com 140 metros de comprimento e 70 de altura, é uma das maiores catedrais da França. Foi construída entre 1852 e 1896, em estilo bizantino-românico, com sua inconfundível fachada listrada. E, por seu caráter majestoso, chama atenção e atrai peregrinos do mundo todo. A ponto de o governo declará-la Monumento Nacional da França.
Um museu para o Mediterrâneo
Seu contraponto arquitetônico está a poucos passos dali. Falo do MuCEM, como é conhecido o Museu das Civilizações Europeias e do Mediterrâneo. O edifício de dimensões colossais e design futurista foi inaugurado em 2013 – ano em que Marselha foi a “Capital Cultural da Europa”. Ele avança sobre as águas da baía e oferece uma rica exposição permanente de artigos e displays multimídia.
A mostra explicita toda a evolução humana nas franjas do Mar Mediterrâneo. São 250 mil objetos, 350 mil fotos e 80 mil gravações disponíveis aos visitantes. Além de um café oportunamente instalado no topo da edificação, com vista panorâmica da área histórica.
Um dos pontos que se avista desde o alto do MuCEM é o milenar bairro de Le Panier. Os contornos culturais dessa parte de Marselha se acentuaram ainda mais em minha visita quando, conduzido por uma guia local, enveredei pelo emaranhado de ruazinhas estreitas, casinhas com mais de 500 anos e marcos históricos que remontam à Idade Média e, em alguns pontos, à Antiguidade.
O Panier é uma viagem no tempo. Impressionante descobrir que ele resistiu a 2600 anos de pilhagens, conquistas, invasões e trocas de poder. A mais recente foi na Segunda Guerra Mundial, quando as tropas nazistas simplesmente decidiram por abaixo metade do bairro para evitar que a Resistência se escondesse no intrincado labirinto de moradias.
Andando por seus becos, me deparei com artistas de rua, bistrôs elegantes, lojinhas de arte e artesanato e livrarias improvisadas nos porões de outrora. Muitas pessoas ainda vivem ali e, em alguns pontos, há até varais improvisados nas janelas, uma cena tipicamente mediterrânea.
Quem igualmente vive por ali é a cultura, na forma de dois museus, uma biblioteca e um centro cultural – todos eles abrigados no La Vieille Charité, um complexo de construções barrocas do século 17 que, por muito tempo, serviu de moradia gratuita aos anciões, veteranos de guerra e toda sorte de excluídos da sociedade. A visita a esse lugar é obrigatória, sobretudo ao Museu de Arqueologia Mediterrânea.
Como tudo nessa cidade, o Panier surpreende. Foi o que apurei ao sair do conglomerado de vielas e deparar com o magnífico Hôtel Dieu, um antigo hospital do século 18, transformado em hotel cinco estrelas da cadeia InterContinental em 2010. Em suas dependências está o Alcyone – um dos quatro restaurantes da cidade estrelados pelo Guia Michelin.
Contrastando com toda essa opulência, surge a poucos passos dali o Hôtel de Cabre, uma construção acanhada e modesta no aspecto, mas com uma história fabulosa. Reputada como o prédio mais antigo ainda em pé na cidade, ele data de 1535. Já espantaria por ser uma obra de estilo gótico, feita bem no ápice da Renascença. Resistiu a todas as turbulências da História e até mesmo à impiedosa destruição pela SS em 1943.
Depois, num arroubo de engenharia dos mais extravagantes, foi rotacionado em 90 graus, para ter a fachada alinhada com a nova rua que brotou nos projetos de revitalização do pós-guerra.
O Panier é a síntese de Marselha. Mas a Provença é ainda muito maior. E novas surpresas me aguardavam no destino seguinte do roteiro: Aix-en-Provence. Semana que vem!