Continuamos com nossa road trip pelo inigualável sudeste da França. Na parte 1, você viu a vibrante Marselha. Agora, um recanto completamente diferente: a bucólica Aix-en-Provence
TEXTO E FOTOS: PAULO MANCHA
AIX-EN-PROVENCE – a bela
Minha segunda parada no tour pela Provença ficava a apenas 33 km. Pertinho, geograficamente, mas distante em outros aspectos.
Se Marselha é um balneário corpulento, vibrante, boêmio e cosmopolita, Aix-en-Provence é um reduto interiorano de elegância e autenticidade. Uma cidade de 150 mil habitantes, todos eles orgulhosos de pisar o chão do primeiro povoamento romano de toda a França, instalado no ano 123 antes de Cristo.
Cheguei ali em uma tarde de sábado e o clima era de festa na Cours Mirabeau – a versão provençal da Champs Elisée. Essa avenida arborizada e charmosa cruza a cidade e também divide a parte antiga da nova.
Transformada em calçadão, exibe um casario de rara beleza, onde, no passado, viveu a nata da nobreza mediterrânea. Afinal, Aix foi a capital da Provença por mais de cinco séculos.

Mesmo depois de submeter-se ao Reino da França, em 1487 manteve sua pompa ao receber um parlamento, que competia com o de Paris nas tomadas de decisões. Ele só seria desativado no final do Século 18, por ocasião da Revolução Francesa.
Isso explica o ar altivo dos cidadãos e o queixo caído dos visitantes. É um lugar que respira cultura.
CONFIRA O VÍDEO QUE FIZ QUANDO CHEGUEI:
Só para se ter ideia da importância da cidade nesse sentido, basta dizer que um dos maiores pintores de todos os tempos nasceu e viveu aqui: o pós-impressionista Paul Cézanne. E outro de naipe ainda maior morou e está enterrado em Aix-en-Provence: Pablo Picasso, sim, ele mesmo.
É um lugar para explorar a pé, com calma, uma boa câmera nas mãos e alma de artista. Foi o que fiz durante toda uma manhã, acompanhado por uma guia local, perdendo-me nas ruelas que sobem morro acima a partir da Cours Mirabeau.
Minha tutora nesse passeio, a portuguesa Leonor, radicada em Aix, resolveu um dos mistérios que permeavam minha mente: o casario preservadíssimo se deve ao fato de Aix-en-Provence ter “rejeitado” a Revolução Industrial do século 19. Em outras palavras, seus governantes e moradores rechaçaram a instalação de fábricas, prática que outrora costumava remover bairros inteiros.
Por consequência, há 14 praças e fontes centenárias espalhadas pela área urbana. A mais famosa delas é a Fontaine de La Rotonde, logo no começo da avenida, ao lado do excelente centro de informações turísticas.
Erguida em 1860, ela se caracteriza por um trio de estátuas que representam a Justiça (virada para a própria cidade), a Agricultura (na direção de Marselha) e as Belas Artes (mirando em Avignon).
Outras fontes são menos espetaculares, mas muito mais antigas, como a Fontaine des 9 Canons, inaugurada em 1691 para fornecer água às Irmãs Beneditinas que fizeram de Aix seu lar.
Nos passos de Cézanne e Picasso
Na minha exploração, dois lugares se mostraram especialmente encantadores. O primeiro foi a Place de L’Hôtel de Ville, um grande largo onde fica o prédio da prefeitura, assim como um imponente portal, uma torre monumental, o antigo campanário da cidade e um relógio astronômico de 1661. Mesmo sendo bem menor em tamanho, lembrou-me a Staroměstské Náměstí, de Praga, mas com um inimitável charme provençal.

O outro canto inesquecível é a Place Richelme, onde uma colorida feira de produtos típicos acontece semanalmente. Delicioso vagar pelo meio das barraquinhas que vendem desde mel de lavanda até o mais sedutor nougat, passando por frutas, artesanato, queijos e azeites (outra especialidade da Provença).
Se alguém já lhe disse que os franceses são “secos” com os turistas, vá até este lugar e entregue-se a um bate-papo com os feirantes. Pode ser na língua em que você e eles conseguirem se comunicar – nem que seja por gestos.
A amabilidade de uma senhora de uns 70 anos me explicando num inglês quebrado e cheio de glamour o que era um “calisson” é algo de que nunca me esquecerei.
A propósito, calisson é o doce tradicional da região, feito de camadas de biscoito, avelãs, melão ou laranja cristalizados e um creme semelhante ao marzipã.
Diz a lenda que os calissons foram concebidos no Século 15, a pedido do rei René de Anjou, como forma de tentar fazer sorrir sua noiva, a sisuda Jeanne. E deu certo, a ponto de a guloseima se perpetuar pelos séculos.
Por todo o centro velho, uma coisa me chamava a atenção: pequenas plaquinhas metálicas no chão com a inscrição “Cézanne”. É um roteiro turístico self-service criado pelas autoridades. As peças incrustadas no solo são a indicação do caminho.
A rota demarcada pelas plaquinhas revela todos os lugares importantes da vida do pintor Paul Cézanne, o mais querido e célebre filho de Aix. Nada menos que 32 paradas, da escola em que ele estudou até o cemitério em que repousam seus restos.
Se você quiser algo mais sintético e direto ao ponto, pode visitar o Atelier Cézanne – a casa onde o artista passou seus últimos anos, de 1902 a 1906, pintando obsessivamente até morrer de pneumonia.
O ateliê não exibe quase nenhuma de suas obras, mas guarda objetos reais que ele imortalizou nas telas, como os crânios humanos de sua famosa pintura “Pirâmide”. Tudo devidamente explicado em visitas guiadas em inglês e francês.
Em alguns casos, o percurso de Cézanne se mistura ao dos lugares notáveis da vida de um de seus maiores fãs: Pablo Picasso. O pintor espanhol chegou a se referir ao colega provençal como “pai” de sua arte.

Picasso era tão obcecado por Cézanne que, em 1958, comprou o Château Vauvenargues, um castelo aos pés do Mont Sainte-Victoire – a montanha que o francês havia pintado 89 vezes (sim, é isso mesmo!), em todos os ângulos e com todas as luzes possíveis.
Afora o castelo, onde hoje está enterrado Picasso (infelizmente, fechado à visitação), o lugar mais emblemático da ligação dos dois gênios das artes é um bar. O Café Les Deux Garçons, na Cours Mirabeau, existe desde 1792 e, ao longo de quase dois séculos e meio, tem sido um plenário de intelectuais, artistas e políticos.
CONFIRA O VÍDEO QUE FIZ NO CAFÉ:
Além de Cézanne e Picasso, também o frequentaram ao longo do tempo os escritores Émile Zola, Ernest Hemingway, Jean Paul Sartre e Albert Camus. Sem falar na cantora Edith Piaf e nos atores Jean Paul Belmondo e Alain Delon… Até Winston Churchill, quando ia à Provença, fazia questão de fumar seus longos charutos tomando um vinho rosé local no Café Les Deux Garçons.
Num fim de tarde ensolarada de primavera, eu também ocupei uma dessas mesas que tantas histórias de paixões, guerras, política e amores já ouviram.
E, sob a generosa sombra dos plátanos, comecei a escrever esta reportagem.
Semana que vem, parte 3: a surpreendente região do Luberon!